08/09/12

Citações e cartas que nem o lixo quer I

"De todas as coisas que a humanidade criou para justificar o supostamente maior número de sinapses neuronais no cérebro humano, a literatura terá sido a mais inútil. De entre tudo aquilo que terá sido considerado como literatura, a ficção, por ser mentira, só é suplantada pela poesia no que se refere a algo que poderia ter sido abolido, apagado, votado a um total ostracismo sem que a humanidade com isso perdesse algo. Pelo contrário, ter-se-ia poupado à História a obrigação de carregar ao colo como filha essa bastarda disciplina que parece ser a história da literatura. Ter-se-ia poupado à humanidade magnífica falácia de que a subjectividade na leitura da realidade e o uso da linguagem para outro fim que não o de permitir o progresso em toda a sua objectividade podem conter a mais ténue réstia de virtude. Um poema não é muito mais do que uma gota de veneno civilizacional concentrado. A invenção de algo para ser narrado como sucedâneo da verdade está longe de ser visto como negativo mas o tempo dirá que a razão está do lado daqueles para quem a utopia seria o lugar da verdade e a negação desse paradoxo que é a ficção." 

Júlio Sousa Teles, O Homem, a Cultura, as Falácias do Século XX.

Caro Júlio,

lamento que tenha partido cedo demais. Nem imagina como as suas palavras soam a profecia. Não tardará, andaremos todos a queimar livros outra vez. Eu não estarei por cá, por opção. Farei da minha ficção aquilo que muito bem entender e farei o impossível, se tiver de ser, para me diluir nela. Vou prescindir da minha realidade nesse dia em que triunfarem os homens como o Júlio e, já agora, Platão, que clama contra os poetas na sua República. Mas deixe-me que lhe diga, sem qualquer ponta de sarcasmo, do qual prescindo para me entregar despudoradamente nos braços da hipocrisia, que, ao menos, lhe devemos fazer uma homenagem: prefiro a sua postura sem rodeios àquela coisa insidiosa e nauseabunda de achar que a ficção serve para entreter e ensinar a escrever e a poesia fala do que é bonito. Saboreemos uma náusea comum, Júlio, relativamente a essa gente e deixemos o tempo falar. Sem sarcasmo nem hipocrisia, entregue agora à crueldade pura, o Júlio já não tem muito tempo, pois não? Às vezes, nem os pactos com o Diabo surtem o seu esperado efeito.

Despeço-me com estima e consideração.

O seu amigo de todas as horas

Tomé Santos

4 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Gostava muito de partilhar este post no facebook... não te importas?

P disse...

Claro que podes, Cláudia! Estas duas personagens... O Júlio então é virus residente nas mentes de tanta gente...

P disse...

E de gente com poder, já agora, o que ainda é mais assustador...

S disse...

Este post é-me muito familiar. Recentemente tive uma longa conversa com um amigo à volta deste tema. É assustador ver a história lentamente a repetir-se...